12 março, 2009

A Despedideira.

Há mulheres que querem que o seu homem seja o Sol. O meu quero-o nuvem. Há mulheres que falam na voz do seu homem. O meu que seja calado e eu, nele, guarde meus silêncios. Para ser a minha voz quando Deus me pedir contas. No resto, que tenha medo e me deixe ser mulher, mesmo que nem sempre sua. Que ele seja homem em breves doses. Que exista em marés, no simples ciclo das águas e dos ventos. E, vez em quando, seja mulher, tanto quanto eu. As suas mãos as quero firmes quando me despir. Mas ainda mais quero que ele me saiba vestir. Como se eu mesma me vestisse e ele fosse a mão da minha vaidade.
Há muito tempo, me casei, também eu. Dispensei uma vida com esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou já não me deixou a mim. Que eu já era outra, habilitada a ser ninguém. Às vezes, contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem. Lembro do tempo em que me encantei, tudo era um princípio. Eu era nova, dezanovinha.
Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de recado. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, vos digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra, eu me divinizei. Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada.
Lembro desse encontro, dessa primogénita primeira-vez. Como se aquele momento fosse, afinal, toda minha vida. Aconteceu aqui, neste mesmo pátio em que agora o espero. Era uma tarde boa para a gente existir. O mundo cheirava a casa. O ar por ali parava. A brisa sem voar, quase nidificava. Vez e voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente, todo chegado como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida.
No entanto, aparentava distância. O fumo escapava entre os seus dedos. Não levava o cigarro à boca. Em seu parado gesto, o tabaco a si se consumia. Ele gostava assim: a inteira cinza tombando intacta no chão. Pois eu tombei igualzinha àquela cinza. Desabei inteira sob o corpo dele. Depois, me desfiz em poeira, toda estrelada no chão. As mãos dele: o vento espalhando cinzas. Eu.
Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do tempo.
Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. Demais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns. Nunca eu pensei que, nesse mesmo pátio em que se estreava meu coração, tudo iria acabar. E, afinal, ele anunciou tudo nessa noite. Que a paixão dele desbrilhara. Sem mais nada, nem outra mulher havendo. Só isso: a murchidão do que, antes, florescia. Eu insistia, louca de tristeza. Não havia mesmo outra mulher? Não havia. O único intruso era o tempo, que nossa rotina deixara crescer e pesar. Ele se chegou e me beijou a testa. Como se faz a um filho, um beijo longe da boca. Meu peito era um rio lavado, toda escoada no estuário do choro.
Deixem-me agora evocar, aos goles de lembrança. Enquanto espero que ele volte, de novo, a este pátio. Recordar tudo, de uma só vez, me dá sofrência. Por isso, vou lembrando aos poucos. Me debruço na varanda e a altura me tonteia. Quase vou na vertigem. Sabe o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Se não me entorno e ainda morro vazia, sem gota.
Porque eu não sou por mim. Existo reflectida, ardível em paixão. Como a lua: o que sou é por luz de outro. A luz desse amante, luz dançando na água... Mesmo que surja assim, agora, distante e fria. Cinza de um cigarro nunca fumado.
Pedi-lhe que viesse uma vez mais. Para que de novo se despeça de mim. E passados os anos tantos que já nem cabem na lembrança, eu ainda choro como se fosse a primeira despedida. Porque esse adeus, só esse aceno é meu, todo inteiramente meu. Um adeus à medida de meu tanto amor.
Por isso ele virá para renovar despedidas. Quando a lágrima escorrer no meu rosto eu a sorverei, como quem bebe o tempo. Porque essa água é, agora, meu único alimento. Meu último alento. Já não tenho mais desse amor que a sua própria conclusão. Como quem tem um corpo apenas pela ferida de o perder. Por isso refaço a despedida. Seja esse o modo do meu amor se fazer nosso. É eterno.

Mia Couto

2 comentários:

  1. B:Carter

    Gostei que tivesses escolhido Mia Couto,e um escritor/poeta algo diferente; profundo pla forma como consegue "mergulhar" nos ambientes e nas personagens , quiçá, quase impossíveis de alcançar.
    Neste texto há poesia, nos sentimentos contraditórios, experimentados, vividos ao longo de uma vida de relacionamento (s). Mas, o incrível é que ele - Mia Couto - descreve e sente o amor como se uma mulher "madura" fosse....e esta en? "lol"

    beijinhos

    Pj

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  2. Muito bom, Mia Couto é sempre especial.

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